Como as emoções controlam a política? - Desesperança
- Antologia Crítica
- 14 de ago. de 2024
- 17 min de leitura
Atualizado: 23 de ago. de 2024
E aí, cê tá suave? Hoje eu quero falar de esperança, afeto e amor. Quase sem introdução. Ih, virou hippie? Good vibes? Deboísta? Lhe falta ódio, Normose, lhe falta ódio.
Então, não, não é nada disso. Hoje eu quero falar de afetos políticos. Afeto não é só carinho, amor e beijinho.
Hoje eu vou te provar por A mais B sobre como lidamos com o ódio, o amor e a esperança de maneira errada, de maneira burra, e como talvez esse seja o nosso grande erro dos últimos tempos. Eu quero falar de medo, do seu uso político e da esperança de um jeito que eu acho que você ainda não ouviu. Se esse é o seu caso ou esse assunto te interessa, vem comigo nesse papo e assista até o final pra que o meu argumento sobre esperança faça sentido.
Não se esqueça de colaborar com o canal se curtir no final e vamos em frente.
O que são afetos políticos?
Eu vou jogar uma pergunta aqui pra gente começar nossa viagem mental. Pra que você luta e por quem você faz suas batalhas? O que faz você mover sua vida e o que faz você paralisar suas batalhas? Veja, eu quero falar de esperança e amor, mas antes de falar deles, eu penso que a gente precisa dar um passo atrás e falar dos afetos.
Se você acompanha o canal Normose, você deve notar que eu uso essa expressão com bastante frequência. Afecções do corpo, afeto de cá, afeto de lá, mas você sabe do que eu tô falando quando eu falo sobre isso? Eu tenho a impressão e um pouquinho de aflição de que as pessoas acham que eu tô falando da coisa da linguagem comum, de afetividade, carinho, essa coisa bacana e até tem um pouquinho disso. Mas afeto é outra coisa.
Aquilo que se sente e como se faz sentir e o jeito que nós mediamos os fatos que acontecem à nossa volta e que possibilita ou impossibilita nossa convivência com o mundo são os afetos. Seres humanos são racionais, é verdade, conseguimos usar nossa razão, navegar no tempo como nenhum animal consegue fazer, mas somos bem menos racionais do que pensamos. Na verdade agimos muito mais por aquilo que nos afeta e que podemos afetar.
E é isso que gera os tais circuitos sentimentais e políticos. Que? Nunca ouviu falar nisso? É assim que define Vladimir Safatle em Circuito dos Afetos. As sociedades não são apenas circulação de bens, riquezas, produção.
Elas são, acima de tudo, sobre a circulação de afetos e os vínculos sociais são construídos através das emoções, das paixões, dos ódios, dos motivos sutis. Portanto, qualquer reflexão que quisermos ter sobre política e sociedade não deve simplesmente direcionar a reflexão para a distribuição de riqueza e desigualdade na nossa sociedade. É preciso adicionar nessa análise como se dão as interações e distribuições emocionais entre as pessoas.
Sim, é isso mesmo que estou falando. A política é o poder que lida com o que se pode sentir e o que não se pode sentir, do que se é capaz de perceber e do que não se é capaz de perceber. Então quem controla o regime do sensível, dos sentimentos, tem a chave para configurar o poder político de um momento, de um grupo, de uma comunidade.
E se você assistiu a nossa série de Estética, você já deve estar fazendo algumas ligações, não é mesmo? Se você não assistiu essa série, você pode assistir depois desse episódio aqui.
E se você viu, deve lembrar, Estética não é só algo visual. Estética produz sentidos e propõe jeitos de agir através das emoções.
A Estética é uma forma de projetar os nossos afetos. Por vezes pensamos que o nosso comportamento é racional e que o nosso sistema apenas segue leis e regras universais que são carregadas da verdade. Tendemos a confundir a regra com a verdade e por isso acabamos deixando de lado as paixões e as crenças irracionais quando vamos tentar nos entender.
Então anote aí, um afeto não se reduz nem a uma ação externa, nem apenas a uma ação interna da nossa cabeça. São as duas coisas, ou seja, aquilo que lhe afeta no interior psicológico, como isso vai afetar os outros ao seu redor. Tá começando a entender onde eu quero chegar? Não? Tá meio complicadinho? Eu quero dizer que a vida social nada mais é do que uma grande manifestação e cruzamento dos sentimentos e o modo como eles se espalham e afetam nossos corpos.
A política é o domínio disso. Pensa aí na dinâmica do seu trabalho, da sua família, dos seus amigos, enfim, pensa na dinâmica que você tem com as pessoas, como todas elas funcionam a partir dos cruzamentos dos afetos e das emoções que cada um sente e a negociação em cima disso. Sempre que você se mexe, age ou paralisa, isso é causado por um afeto primordial.
Amor, ódio, medo, alegria, tristeza, ousadia, raiva, indignação, coragem, compaixão, desamparo e assim vai. Baruch Spinoza, um dos teóricos estruturais para esse assunto, escreveu a teoria dos afetos e dizia que o intuito de pensar sobre isso não é deixar de sentir e passar a detestar as ações humanas, mas entendê-las. É uma proposta de falar sobre a estrutura daquilo que chacoalha os nossos sentidos.
E aí minha tese é de que a esperança é o afeto que possibilita todos os outros sentimentos. Mas antes de falar da esperança, eu não posso deixar de falar dos seus primos, porque nada existe do seu próprio lado. Ou seja, só tem esperança quem tem medo.
Medo
O medo como afeto é o mais constante na vida em sociedade. É o medo que media nossa experiência com o social, e é por ele também que os poderes conseguem estabelecer estratégias de aceitação das normas, dos bons costumes, das regras como normas normais, normoses, a doença da normalidade. Se de um lado o medo é fundamental para nossa manutenção como espécie, e é muito importante para a nossa segurança, senão você certamente faria coisas estúpidas, você sabe do que eu estou falando aqui.
Do outro lado, quem tem medo não pergunta, não questiona, não duvida e rapidamente paralisa diante de um inimigo, por exemplo. Quem tem medo obedece, e o medo é um afeto de dupla ação. Nos protege porque nos impede de agir, mas nos paralisa diante das coisas ruins porque nos impede de agir.
Por isso podemos dizer que o medo é estrutural e estruturante do poder para manter a estabilidade da nossa vida social. A ideia de Estado ou de polícia, por exemplo, usa historicamente o medo como ferramenta da manutenção da sua existência, porque ao mesmo tempo que ele gera, possibilita a nossa proteção, cuidados com saúde, polícia, é ele também que deixa acontecer a insegurança, a violência, a necessidade da busca pela saúde, e aí ele te protege dizendo, se protejo, logo obrigo, manda quem pode e obedece quem tem juízo. Eu é que não vou mexer com poderosos, preciso comer, preciso trabalhar, pagar as contas, não posso arriscar.
Desamparo
O medo também gera um outro afeto fundamental, é dele que nasce o desamparo. Ninguém quer viver com medo, queremos buscar afetos positivos, porém, ao olhar para o imenso mar de caos que se põe diante de nós, vem uma agonia, uma angústia profunda, chamada desamparo, uma condição de estar sem chão, sem ajuda. A sensação de que o sofrimento que se está vivendo não terá mais fim, e sem ninguém para lhe amparar, você não sabe mais o que esperar do mundo.
É a percepção de que a situação que vivemos não será resolvida com um manual pronto de respostas simples e binárias, e aí travar. Já sentiu isso? O que seria da música, da pintura, da literatura, sem uma boa dor no coração? Um desamparo? Um desespero? Eu digo isso porque o desamparo só cessa a partir de uma reavaliação, uma reconsideração do que é possível. E por isso, medo e desamparo são próximos, mas diferentes.
Enquanto o medo é a expectativa de um perigo que pode surgir, o desamparo é a reação a um objeto existente, a um fato que ocorre, alguma coisa que a gente não consegue reagir de primeira e quebra nosso sistema de defesa. No entanto, o desamparo, argumenta Vladimir Safat, é um ponto de partida. Quando o indivíduo chega numa situação limite, no auge de uma exaustão, pode-se abrir ali uma fenda.
Conseguir olhar de fora a situação e dizer... "Capitalismo falhou!" Uma fenda. Conseguir olhar de fora a situação e dizer... "Justiça!" Então é do desamparo que podem começar as mudanças. Tá começando a entender onde eu vou chegar? Ainda não? Ainda tá achando que eu vou meter um papinho em Good Vibes, Namastê, Peace and Love? Tá te dando ódio? Então vamos lá.
Antes de falar da esperança, pra aquele que tá em desamparo, vamos falar então de ódio.
Ódio
Tem meme que dura no nosso campo há anos, que é o tal do... Te falta ódio. E eu admito aqui que eu reviro o zóio toda vez que eu escuto isso.
Ok, pra muita gente deve faltar ódio, mas não falta ódio ao mundo, não falta ódio ao sujeito, não falta ódio na internet. Nós só dizemos isso porque confundimos ódio e vazio com justa raiva. A justa raiva, ou justa ira, aparece na pedagogia da esperança de Paulo Freire, não somente como um direito, mas uma força de ação pra superação das mazelas sociais das pessoas.
Decorrente da desumanização do sistema econômico que a gente vive, a justa raiva é a ação de não aceitar calado, passivamente domesticado, o fato de que o sistema econômico produz nossas mazelas, nossa pobreza, nossa fome, nosso desemprego. No entanto, Paulo Freire coloca bem. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirma, perder-se em raivosidade, que corre sempre o risco perigoso de se alongar em odiosidade, que mais nos prende do que nos libera.
E aqui mora o perigo. Esse ódio é o afeto que a insegurança social gera como subproduto. Ele, por uma vez, pode ter dois caminhos, o ódio como gasolina de combate, de luto, pra desenvolver um pensamento crítico, que consiga combater as desigualdades, ou como o aprofundamento das ações violências, num desejo de odiar tanto que odeia a própria liberdade.
O ódio, quando vira sistemático, literalmente normatiza, põe na lei, transforma em norma a violência descabida contra um inimigo. Pensa em escravidão de outros povos, ou na ideia de que um país entre em guerra, ódios baseados na desumanização, ou na confusa e imaginária ideia de fronteira. O ódio é catalisador de normoses.
Toda vez que os seres humanos são coisificados, isso tende a acontecer. Eu devo matar o outro porque o outro é mau, sem levar em conta de que esse outro também tem você como outro e pensa, eu devo matar o outro porque o outro é mau. É nesse ponto que Walter Benjamin traz uma ideia poderosa sobre autoritários dos fascismos do século XX.
Eles permitem às massas expressarem seu ódio, mas não reivindicarem seus direitos. Terem sua expressão, conservando ao mesmo tempo as relações de classe que sempre tiveram por aí. Esse ódio acrítico é estimulado por aquilo que Paulo Freire vai chamar de programa de desesperança, que faz com que a gente tenha nossas forças minadas e a nossa potência retirada diante de tudo aquilo que tá ruim.
E aí nos paralisamos com vontade de destruir tudo à nossa frente. Isso não vai dar certo. E você já deve ter sentido isso alguma vez, não é? Então não. Não falta ódio. Falta usar a justa raiva de gasolina pra ação. Porque o ódio tem um problema.
Ele é um afeto incompleto quando isolado e pode entorpecer-se em prática. Ou seja, ele pode até ser suficiente pra produzir uma sensação de unidade social entre pessoas porque é sempre um inimigo à espreita. No entanto, o ódio acrítico sem destino apenas mantém resíduos fascistas dentro de cada um de nós e não produz nenhum tipo de libertação.
Portanto, como qualquer outro afeto, ele é um poder de afetar o outro e precisa ser usado de maneira muito bem calculada e de modo sábio pra não se voltar contra você.
Sabe aquele clichê, a diferença entre o remédio e o veneno tá na dose? Com ódio é igualzinho. Do contrário, podemos cair num efeito perigoso, um certo derrotismo poderoso que até percebe as contradições do sistema, mas se paralisa na raiva e naquilo que Paulo Freire coloca em Pedagogia da Esperança como fatalismo libertador ou libertação fatalista.
Um efeito do tipo mola que enxerga apenas no paraíso perfeito as formas de ação. E como o paraíso não tá aqui, não dá pra agir. E a partir de agora se você vestir a carapuça é contigo, ok? Mas sente só, sair falando frases de ordem, ficando puto com o mundo e gritar puritanismo diz muito mais sobre você do que sobre aquele que você tenta combater.
Encher as pessoas de culpa pode levá-las a se sentir cada vez mais impotente, não querendo mais te ouvir. Agir, portanto, com esses afetos não críticos ou isolados corrói, corroeu e corroerá o nosso campo político e a nossa sociedade. Que é claro, se afeto e estética importam, ninguém vai querer nos ouvir se a gente agir com afetos tristes, performando a caricatura do esquerdista chato, sisudo e quer mudar o mundo, mas não suporta gastar um segundo na ideia de mudar as pessoas.
Tá na introdução de O Antiédico, de Deleuze e Guattari. Não imaginem que seja preciso ser triste pra ser militante, mesmo que o que se combate é abominável.
É a ligação do desejo com a realidade que possui força revolucionária.
Eu não tô pedindo aqui pra você confundir a reação do oprimido com a violência do opressor. Apenas dizendo que o ódio é um afeto necessário, como todos os outros, mas que ódio sem crítica anestesia e não dá pra promover mudança sendo escroto pra caralho. Desculpa descer o nível desse jeito, mas não tem outra maneira de ser mais clara, senão pra que a gente luta?
O afeto ódio não pode ser a única estratégia, mas pra imaginar uma nova sociedade e imprimir transformações é preciso ir mais, transformar a tristeza da política em um ato potente e amoroso, alegre, capaz de transformar o medo da servidão em esperança, no sentido de esperançar, de agir.
E agora sim, nesse sentido, é preciso falar de esperança política. Calma, pra você que odeia a ideia de esperança, eu também já fui assim, até entendei conhecer esses caras aqui:
E caí a ficha de que não adiantava nada ficar gritando contra o mundo, achando que isso promoveria alguma mudança. Pra transformar o mundo, era preciso me transformar radicalmente, passar a trabalhar na chave da esperança.
Esperança
E foi assim, com essas estruturas, mecanismos e contextos que Paulo Freire escreveu a Pedagogia da Esperança. No começo dos anos 90, o mundo vivia em profunda desesperança. Guerra do Vietnã, queda do muro de Berlim, queda da União Soviética.
Francis Fukuyama lançava seu livro O Fim da História e o Último Homem, e anunciava que não haveriam mais novidades para a sociedade dali pra frente.
No Brasil, o fim da ditadura militar entregava uma sociedade toda traumatizada com juros explodindo. Numa época em que muitos intelectuais deixaram de pensar no futuro, Paulo Freire foi na contracorrente.
Lançou a Pedagogia da Esperança.
"... que era uma concepção autoritária, estalinista, deformada, que não podia continuar, que tinha que fimdar. E findou. Mas não findou, foi um sonho socialista pra mim. Esse tá, pelo menos em mim, mais vivo do que antes."
E uma esperança movida em pura ação. Não é aquela esperança no sentido de esperar, é a esperança do verbo esperançar, pra não apenas esperar, mas agir, porque a esperança é o que permite ver que o futuro não tá dado e que a disputa é urgente e feita agora.
Alguns dizem assim, esperançar é dizer demorou, o mundo tá ao lixo e todo mundo quer mudar, o que vai fazer explodir essas mudanças? Esperançar é construir utopias pra ter um mapa pra caminhar e um norte pra lutar. A função da utopia, inclusive, é fazer a gente caminhar.
Aliás, dá pra perceber a propaganda ideológica incrustada no sentido da palavra utopia, que o senso comum coloca. Utopia é lida como sinônimo de impossível. E não, utopia é um lembrete de onde queremos chegar e do que é preciso ser feito no presente pra o que se vislumbra no futuro.
A história não está condenada a nada, nem a fajuta ideia de que estamos num apocalipse e que é preciso conservar tudo que tá aí, e nem uma condenação de que certamente a vitória virá porque a vida é irada, uhul, vamos ser felizes. Não, não é isso. A gente não tá evocando aqui uma felicidade vazia, hedonista, uma esperança consumista.
Os livros e artigos que usamos na fonte desse episódio estão propondo uma compreensão do campo dos afetos como uma ferramenta ética, ou seja, é pensar nos afetos como um modo de vida, um jeito de agir e praticar o que queremos pra nós e pro mundo. Isso porque quando se está cheio de desesperança, é mais fácil ser controlado. E por isso coloca Deleuze em diálogos.
Os poderes estabelecidos têm a necessidade das nossas tristezas pra nos fazer de escravos. O tirano, o padre, os tomadores de alma têm alguma necessidade de nos persuadir de que a vida é dura, pesada e de que é impossível lutar porque é assim mesmo. Então veja como nesse sentido, esperança é possibilidade revolucionária.
Num mundo que diz que não dá pra mudar, sonhar é ser transgressor. Não como sonho idealista vazio, porque a vida é curta e a gente não tem tempo pra isso. Tô dizendo de agir no presente pra sonhar um futuro diferente.
E aí mais uma vez vem a pergunta, se você quer mudar a sociedade, é preciso mudar as pessoas. E como você vai fazer isso se você só treinar ódio sem gerar nas pessoas o afeto compaixão, o afeto esperança? O senso de comunidade, coletividade, sem saber onde ir e sem acreditar que é possível mudar, não há porque lutar. Isso porque a desesperança é sempre reacionária e pode atingir todos os campos políticos.
A desesperança leva ao desespero, à paralisia, à passividade. Sem esperança não há porque começar um embate. A esperança é uma condição pra história girar, diz Paulo Freire.
Sem ela não haveria história, mas determinismo. E isso é a negação da história. A alegria, num mundo programado pra tristeza, portanto, é resistência, mesmo diante ao adverso.
E isso não é ser otimista desenfreado não, pelo contrário. Eu preciso, na verdade, tomar cuidado com o pessimismo. Eu tendo a ver trevas em tudo, eu fui ensinado a ver o pior por aí.
E esse é o treino que eu ando tendo, perceber como somos criados pra olhar do pior jeito todas as coisas e como isso produz efeitos nas nossas subjetividades, nas nossas opiniões. E pra isso, apenas nos vigiando sempre pra notar quais são as ações que nos fazem pior, nos paralisam.
Prática de liberdade e não de violência e ódio
Nossa querida Rita, Ritinha, Rita Von Hunt, tem um texto sobre o Raymond Willian, sociólogo e teólogo da comunicação, que faz um chamado que é chamado de esperança radical como projeto intelectual.
Diz Raymond Willian: "Paz se constrói, paz é a ação no hoje pra transformar o amanhã. E pra construí-la é preciso muito mais do que acabar com a violência, o mesmo vale pra acabar com as guerras. Não basta recusar apenas a guerra, pra construir uma sociedade mais fraterna, é preciso organização, mas muito mais do que isso. É preciso sentimento e imaginação, aflorar novos desejos, que não desejem mais a violência como horizonte do possível, onde há poder, deve haver resistência."
Mas é claro, não vem da noite pro dia, não basta dizer, ah vou me libertar, vou parar de agir como fui ensinado, vou tomar um chazinho de qualquer coisa e vou ser livre, uhuuu. Não, só existe treino, cultivo e exercício, porque não é fácil refundar uma nova ética de agir.
E por isso Paulo Freire vai escrever tanto sobre as práticas de liberdade. Sim, liberdade é um treino, é preciso treinar isso desde já, senão fudeu. Se os sujeitos forem apenas treinados no ódio e pra reproduzir afetos de ódio, a hora que puder, tudo vai rapidamente descambar pro ódio e pro conflito.
Então é preciso treinar liberdade, treinar coletividade, outros afetos pra além da violência, violência, violência, violência, violência, violência. Isso não quer dizer nenhum tipo de divagação tosca, de lei da atração, pensamento positivo. Esperança transformadora é aquela que parte pra ação sem ignorar contexto, dados concretos, historicidade, mas que foge de cair no fatalismo, e que cultiva a esperança pra que cada vez mais pessoas possam agir conosco.
E o local de cultivo da esperança são os coletivos, os grupos, as amizades, a família, a escola, grupos de estudos, partidos, grupos humanos que você pode chamar de seu. O pertencimento é a joia mais poderosa pra transformar os sujeitos e todo mundo à sua volta. Por quê? Porque é ali que a gente consegue produzir novos saberes, novas trocas.
E portanto, se a gente quer produzir mais esperançar, nós temos que estar em diálogo com o máximo de sujeitos coletivos possível. Eu ousaria dizer, só de sacanagem, que a amizade, o pertencimento, novos acolhimentos são a melhor arma de combate contra grupos fanáticos, de conspiração, de extremização que acolhem via raiva e negação. Trocar com grupos diferentes é o melhor jeito de aprender a revolucionar o mundo.
E além dela, é claro, cultivar, apoiar e consumir arte. Bem, eu sou historiador, e historiadores aprendem uma coisa desde o início da faculdade. Não existe "e se" na história.
A história é a que nós reinterpretamos e interpretamos constantemente à luz do nosso tempo, mas os fatos estão ali, apresentados no passado. Historiador não pode praticar futurologia, mas o futuro precisa ser resolvido. E tem alguém que treina mais o mundo do possível do que a arte? Do que o mundo da imaginação? Da criatividade? Parece-me que a arte é o único saber que é calcado em se deixar levar pelo mundo do "e se".
E se nós pudéssemos sonhar? E se nós pudéssemos nos organizar? E se a gente pudesse pensar em outro sistema? E se fosse diferente? Por isso, encerra Paulo Freire numa frase que se tornou conhecida, mas pouco praticada. "Ninguém liberta ninguém. Ninguém se liberta sozinho.
As pessoas se libertam em comunhão." Em um organismo. Em que as partes são, ao mesmo tempo, causa e efeito uma das outras.
Isso é o que Paulo Freire chama de boniteza da vida. Uma ética, uma moral, uma coerência de convívio respeitoso com o outro. Isso sim é ação transformadora.
É perceber que, apesar da dor pelo que se luta, o ato de batalhar é belo. Não se nega o mundo, vive-se nele. O mundo é o que é e não o que queremos que ele seja.
Mas o mundo pode vir a ser o que queremos, se mudarmos a maneira que ele virasse. O tipo de ação que buscamos aqui nesse canal não é achar que temos uma verdade universal em nossas mãos, nem que a única verdade possível nasça do junte-se-a-nós. Concorde comigo.
Eu estou aqui apenas para plantar sementes, provocar reflexões e divulgar esperanças. Para te lembrar sempre das normoses, as patologias da normalidade. Porque eu sei, eu sei que o capitalismo parece insuperável, mas também era assim o poder de um imperador.
Roma durou séculos e parecia insuperável o poder de um rei absolutista, na Europa de alguns séculos atrás. As coisas passam, as coisas acabam. Tudo é impermanente e em constante transformação.
Estamos condenados à mudança e esperançar é preciso para que as mudanças promovam o maior bem-estar possível para o máximo de pessoas que pudermos. E encerra esse vídeo com uma provocação que repete Paulo Freire. "Essa luta somente terá êxito quando os oprimidos, a buscarem sua humanidade retirada pela estrutura, conseguirem não se sentirem mais idealisticamente opressores, mas restauradores da humanidade de ambos, que já treinaram outras imaginações de posição social."
É, Paulo Freire está sendo ousado. Está dizendo, está aí a grande tarefa humanista e histórica dos que sofrem. A ação libertadora é libertar-se a si e aos que oprimem.
Esses, em razão do seu poder, não podem ter essa capacidade. Nem de libertar, obviamente, os que oprimem, muito menos a si mesmo. Então, essa capacidade só pode nascer da força dos de baixo.
E só assim haverá libertação possível, real, palpável, material. E é nela que eu permaneço com esperança. Para que a gente, depois de toda batalha e luta, consiga o mais importante.
Curtição, para que possa haver festas, sorrisos, encontros, sabores, amores. E desculpa soar breguíssimo no final desse vídeo. Mas no final das contas, não é isso que importa? Para que você luta pela mudança da sociedade?
E aí, já tinha pensado sobre tudo isso? Como o Mercadão dos Desejos vende suas emoções e faz o jogo da política dos afetos? Então, se ao longo do ano de 2022 e até aqui em 2023, trabalhamos muito sobre a estética e a força política da arte, como uma das máquinas por trás do mundo.
Agora, inauguramos uma série nova, para olhar por outra máquina que comanda o mundo. Uma longa jornada para falar deles, os afetos. Haverá afetos que ainda não conhecemos? O que tem para além de alegria e do amor? Para além do ódio e da indiferença? Como sair do quebra-cabeça dos afetos tristes? No segundo semestre, vamos aprofundar afetação por afetação.
Então, convido cada um para essa jornada longa com a gente. Se você, ao longo do vídeo, percebeu como estamos melhorando a edição e a qualidade, e como deve dar um trabalhão, é graças a você que nutre um afeto por nós e que está financiando a nossa equipe. Mas é sério, se você acha que o trabalho vale, participe do nosso financiamento coletivo, que permite que esses vídeos continuem existindo criticamente.
Ou o Catarse, que é o nosso financiamento coletivo, ou o Pix, que faz toda a diferença. Ou ainda, quem sabe, a nossa loja, que agora está no ar, lançada, e tem uma coleção de camisetas normosas e das nossas normeias. Estreando o nosso querido burnoutinho.
Aproveita as últimas novidades no normose.co E claro, se nos odeia e odiou esse vídeo, participe dos nossos comentários xingando muito aqui embaixo, extravasando a sua raiva e seu afeto odioso. Isso faz parte também e ajuda muito o nosso engajamento. E agora, para finalizar, fique com o gigante Paulo Freire e sua dose de esperança. Obrigado por ter ouvido o vídeo até aqui. Nos encontramos nos comentários, nas lives. É nóis, e fomos.
...deixemos essa gente competente produzir a riqueza e quando chegar um dia a possibilidade de distribuí-la, então se distribui. Mas se continuarmos a falar na necessidade ética, democrática, de distribuir essa riqueza, que é uma desgraça, de amenizar a dor dos outros, se continuarmos a fazer esse discurso, vamos atrapalhar os produtivos. E com isso vamos obstaculizar a vida. Isso tudo é uma mentira, isso tudo é a ocultação, isso tudo é o mente de quem se dá essa mão para que a memória não se construa.
_
Este texto é uma transcrição automatizada do material original apresentado no vídeo abaixo. Pode conter erros de transcrição. Recomendamos assistir ao vídeo para uma compreensão mais precisa e completa.