Com que frequência você pensa no Império Romano? - Imaginário Romano e Viés de confirmação
- Antologia Crítica
- 17 de ago. de 2024
- 9 min de leitura
Atualizado: 23 de ago. de 2024
Introdução
Com que frequência você pensa no Império Romano? Brincadeira! Ou será que não? E aí? Suave? Tranquilo?
[...]
Então vamos pensar nessa história do Império Romano, das redes sociais e você não sabe do que eu tô falando? Parabéns.
Você não sofre de cronicamente online como nós, mas eu te conto.
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Com que frequência você pensa no Império Romano?
Essa pergunta, com que frequência você pensa no Império Romano, começou a rodar no TikTok americano, quando mulheres faziam perguntas pros seus namorados e descobriam que, teoricamente, os homens, e apenas os homens, pensam muito no Império Romano. Isso transbordou pra grande mídia de lá, ganhando matéria.
E o que acontece é que a gente importou, com bons vira-latas, essa moda a partir desse vídeo:
"Eu vou precisar trazer isso pra cá, porque eu tô... chocada. Eu vi uns vídeos na gringa, de umas mulheres falando assim, não perguntem pros maridos de vocês com que frequência eles pensam no Império Romano, porque, estranhamente, tem uma frequência. E eu fiquei tipo, hã? Curiosa, que só eu fui perguntar pro meu namorado, ele me respondeu, não sei, uma vez na semana."
Muitas pessoas então passaram a discutir masculinidades, imaginários romanos, o mistério por trás disso, e... eu acho que não é por aí. Sei lá, eu vou ser bem sincero.
Eu acho que existem três caminhos sobre esse assunto. Vies da confirmação, apito pra cachorro pra fascistas, e o imaginário fake de Império Romano que todos nós temos. Mas antes de dar a minha opinião, eu preciso dizer, eu não penso muito em Império Romano.
Eu só penso no Império Romano quando eu vou falar de Império Romano. E se você assiste os vídeos do canal, deve perceber que, com alguma frequência, eu penso em estética, afeto, Segunda Guerra Mundial, algoritmos, seitas e fanatismo da extrema direita, e tudo isso que eu falo aqui. Como eu sou historiador, eu tenho em volta de mim diversos maconh... Historiadores.
Perguntando pra eles, a maioria também não pensa em Império Romano. O que casava com as minhas pesquisas dentro das redes do Normose, tanto no Instagram, quanto no Twitter. Curiosamente, entre os que pensavam em Império Romano, homens e mulheres estavam mais ou menos pareados.
Só que aí tem uma coisa. Os assuntos que o público do Normose mais pensa acabam girando em torno de desigualdade social, capitalismo, revoluções socialistas e comunistas pelo mundo, estética e arte, e os assuntos que eu também me interesso.
Será que eu poderia dizer, então, que os jovens estão pensando mais em revoluções pelo mundo? Ou será que isso vem de um recorte de pessoas? Será que vem de um viés de confirmação? E aí é que tá o pulo do gato? O trending, a modinha, o meme, viralizam justamente pelo comportamento repetitivo.
A tendência é que pouquíssimas pessoas postem vídeos dizendo que não pensam no Império Romano. Senão não teria piada, não teria graça. E os vídeos mais viralizados confirmarão a tese inicial de que as pessoas pensam no Império Romano, gerando, assim, mais vídeos onde se pensa em Império Romano e o loop vai assim e tal.
Então, pra começar a reflexão, eu queria dizer que acho que a resposta é bem mais sem graça e menos emocionante do que qualquer coisa. Até porque, sabe quem foi que iniciou realmente essa thread? Não foi uma mulher. Foi esse cara aqui:
Sério, esse cara. Ele é cosplay de retratação histórica. Acho que a discussão acabou aqui, né? Fim do vídeo, tchau.
Mas assim, esse cara é o Arthur Rouleau, um rei senador romano de 32 anos e influenciador de história que ganhou muitos seguidores postando vídeos como Legionário Romano e Gladiador. Agora, sabe qual é o nome que ele usa online? Prepare-se, Gaius Flavius, que é o nome de um político da República Romana. O cara é simplesmente o Paulo Cogos da Roma Antiga.
Curiosamente, a companhia de encenação romana do nosso amigo aqui envolve 16 homens e só duas mulheres participando. É daqui que ele tirou todos esses dados. E se esse maluco não tem sérios problemas pra levar pra terapia sobre a sua relação com imperadores e impérios e essa sensação de dependência psicológica entre desejo e falta, meu nome é Imperador Tiberius Kenjius. Prazer. Para, né, maluco? Porra. Mas tá, vamos aproveitar e entrar na onda desse cara e falar sobre o que mais tá viralizando, que é a questão de gênero.
Primeiro que o assunto tá sendo tratado da maneira mais imatura possível, parecendo Damares, onde o menino gosta de futebol, Império Romano e a menina gosta de boneca. E tá rolando uma inversão.
Meninos e meninas são estimulados, desde pequeno, a se interessar por determinados assuntos. Não tem nada de natural. É socialmente construído, politicamente usado.
É como olhar pro filho da Ivete e dizer Nossa, como ele toca bem. É tão natural. Olha pro nosso meio. Todas as pessoas, de todas as identidades, podem ser aficionadas por histórias de todos os tipos. E muitas mulheres pensam em história antiga. Existem grandes especialistas do mundo em história romana
O Império Romano
E se existe alguma preponderância de gênero, ela é muito mais fabricada. E a Invertem transformando num produto de simbologia sagrada, que homens são ligados ao arquétipo de...Ah, para, né? Até porque a própria ideia imaginada de Império Romano apaga o papel das mulheres do Império Romano. Papel esse que tinha marcadores de poder diferentes e mulheres poderosíssimas, pautando no Senado.
Mas o nosso campeão aqui não parece pensar nisso, né? Ou seja, tudo não passa de viagem de confirmação. Mas eu sei que se eu terminar o vídeo assim, você vai me matar, vai ficar muito sem graça, não é? Então mesmo levando tudo isso em conta, vamos fazer um exercício de imaginação aqui sobre o que significa pra quem pensa em Império Romano.
Pensar em Império Romano? Por que tantas pessoas? Ou melhor, qual o tipo de Império Romano que as pessoas pensam? Pois de fato, o impacto cultural dos romanos, ou ao menos do imaginário dos romanos sobre as sociedades modernas, é muito forte.
E isso não é novidade agora. Isso sempre fez parte do que é chamado de Zeitgeist cultural há muito tempo. Não só porque o Império Greco-Romano teve forte influência na construção da filosofia ocidental, das noções de direitos, da nossa língua, como também pelo etnocentrismo, uma visão que considera a civilização clássica a fonte única de todo o Ocidente.
Existe uma questão política aí, portanto. O Império Romano foi mesmo uma forte potência econômica, política, militar de seu tempo. Mas sinto que ela tem significados diferentes para países colonizados e colonizadores.
Porque eu sei que, apesar de não ser historiador de antiga, e eu não sou especialista, faço questão de marcar aqui, eu sei muito bem que as pessoas tendem a ser obcecadas pelo passado. Mas é um passado que lhes é estimulado, que está rodando pela cultura. E isso não é natural.
Ou você acha que é à toa que não se vê, por exemplo, sobre os reinos e impérios de África, que é de onde a maioria de nós descende? Será que tem a ver com o que consumimos de ideal de império? De imaginação política de herança europeia? Do cardápio educacional e das matérias ensinadas na escola? Ou será que isso tem a ver com o arquétipo do guerreiro?
O imaginário conservador
Mas ok, também não posso negar que existe sim um imaginário conservador bem problemático sobre o Império Romano. Um ideal de masculinidade, de corpos másculos, de batalhas sangrentas e assim por diante. Assim, sobretudo em círculos conservadores, de extrema direita, cristãos apostólicos romanos, o pessoal anti-identitarismo.
Essa visão é muito estimulada. Um ideal de passado que nem existe, mas que é sempre suscitado para essas pessoas, como se a causa dos problemas do mundo fosse o que a gente não vive na antiga Roma. Mas essa ideia, como todo marketing político que omite dados para florear o que se vende, ignora, cria uma Roma estável que ignora que 62% dos imperadores morreram, que ignora que mais de 100 anos foram de pandemias e fome.
O que vem à mente são os gladiadores, o sangue, a submissão. O que se imagina, então, é o Império Romano de Estúdio, o Império Romano de Hollywood, das grandes séries. Transformações românticas do cinema sobre os fatos históricos.
Ou é essa visão, ou a visão nascida dos textos moralistas do século III que descreviam Roma nos tempos do paganismo, que consideram apenas a visão de orgias, bacanais, pecados aos montes para justificar a perseguição que essas pessoas sofriam.
Tinha isso? Tinha. Mas quando não tinha orgia e bacanal? Então é preciso considerar também que o próprio Império Romano usou da arte como propaganda política.
Otávio Augusto, que era sobrinho neto de Júlio César, necessitava conquistar o status de imperador e governante único. E ele fez isso durante a Pax Romana, embelezando as cidades, propagandeando seu rosto, celebrando a paz através do ócio, vendendo uma Roma perfeita, que ignorava os grafites de Pompeia falando putaria, metendo pau no autoritarismo do governo ou os motins de resistência das mais diversas formas de escravidão. Será que as pessoas que pensam em Império Romano pensam nisso? Por que será que não?
O mito do Império Romano
E agora vem, hein? O que alguns historiadores de história antiga afirmam é que o imaginário de Império Romano é um grande mito.
Não temos, e jamais teremos, uma história real das antigas Grécia e Roma em termos de uma sequência de eventos definidos. Segundo os historiadores, Júlio César é um personagem histórico, mas ele não é uma figura histórica como, sei lá, Hitler ou Che Guevara. O fato de Júlio César ser visitado há tanto tempo faz com que a imagem de Júlio César seja diluída através do tempo.
Os personagens do Império Romano são revisitados pelo presente de maneira a justificar diferentes coisas. Inclusive pro supremacista branco que fica se apegando nesse passado falso de pureza racial, saiba que o Romano saqueou, pilhou, se integrou e mixou com diversas culturas, deuses africanos, cultura grega, arma dos gauleses, e é bem da verdade. Se você imagina bárbaros como invasores que saqueavam, matavam e abriam caminho pra atacar os romanos, você ainda tá preso na propaganda do Império Romano.
E os romanos são bem mais parecidos com os bárbaros do que eles gostavam de imaginar. Então olha aí pro seu imaginário dominado. Quando você pensa em Grécia Antiga, você pensa nisso:
Revolução Francesa, assim.
Independência do Brasil, bem é claro, esse quadro.
Imaginários através da obra de arte.
A importância da Estética
E olha só eu falando mais uma vez do assunto que eu penso toda semana. A importância da estética. Inclusive pra você que andou dizendo que pode fazer um jogo da cachaça toda vez que eu e o Ora Thiago falamos sobre estética. Talvez você esteja certo e seja hora de beber um drink.
Representações artísticas através da cultura é o que domina e povoa o nosso imaginário. E veja só, eles se alteram e são disputadas por cada sociedade presente.
Então anota aí uma coisa. A história é, na verdade, o tempo presente revisitando o passado. Ou seja, a maneira que nós pensamos em Império Romano não é a mesma maneira que, sei lá, Santo Agostinho pensou no Império Romano.
O passado é apenas uma chave de ferramenta do discurso do presente. E não pra aquela história de 'Ah, tem que usar a história pra aprender e não repetir os erros do passado.' Não, a gente nunca aprende e isso é um mito que a gente pode conversar outro dia.
Eu tô querendo dizer que só temos como olhar o passado de acordo com as chaves que temos no presente. Tudo aquilo que a gente escolhe pra olhar do passado diz muito mais sobre o presente nosso do que sobre o passado. Segundo Marc Bloch, é no jogo do presente entre o passado que se desenvolve a história.
Como se cada tempo histórico revivesse o passado a partir das suas utilidades, dos seus objetivos e estivesse em constante disputa sobre os significados. No final, toda história é uma história do presente. O que nós olhamos do Império Romano ou não olhamos do Império Romano, revela muito sobre nós.
Tem muita coisa pra pensar sobre o Império Romano e se a história é uma disputa de sentidos e há um legado tão gigante sendo revisitado da maneira mais escrota possível apesar das boas coisas que toda a história tem pra trazer pra reflexão será que realmente a gente deveria deixar a extrema direita apenas tomar conta de todos os espaços da cultura antiga?
Então vamos esquecer essa ideia de red flag de que pensar o Império Romano é apenas coisa de fascista. Isso existe sim, mas com uma disputa histórica uma disputa de narrativas. Ok, se você for assim
você realmente tem um problema bem sério pra tratar e o menor deles é o Império Romano.
Mas senão tá tudo bem ter alguns gostos diferentes todos nós temos gostos peculiares e se você não pensa 24 horas obcecado nisso é normal estudar e pensar sobre qualquer coisa incluso o Império Romano. Mas tá bom, eu sei que muitos de vocês vêm aqui no canal pra sair com algumas pulgas atrás da orelha. Então aí vai.
Levando em conta que olhamos pro passado pra revisitar o presente e essas pessoas, sobretudo americanas tão olhando muito pra queda do Império Romano com a coincidência da mudança de impérios no mundo?
Será que tem alguma coisa a ver com o desespero de não ser mais apenas a única potência? Será que os defensores do capitalismo tardio tão em desespero olhando pra decadência? Não sei. Muitas questões a pensar, inclusive nada. Porque lembrando que tudo é viés de confirmação e a gente tá só viajando na palavra.
Se você quiser inclusive ouvir mais sobre esse assunto viajando na palavra saiu hoje um podcast que eu participei lá com a querida amiga Clara do Mimimidias que sempre me convida, participa da vizinhança e a gente trocou muita ideia sobre o Império Romano por pura coincidência. Ou será que não?
[Outros temas do vídeo: Marketing do Absurdo e Live NPC]
Enfim, é isso. A gente se vê. Desculpa esse final meio maluco.
É nóis. E falou-se.
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